Jogo Invisível: Quando a bola rola e a câmera não mostra

Durante décadas, a cobertura jornalística ignorou ou distorceu o futebol feminino, influenciando diretamente sua visibilidade e valorização no cenário esportivo brasileiro.

 

No Brasil, o futebol é mais do que um esporte. É uma linguagem nacional, presente nas ruas, nos estádios, nas escolas e, principalmente, nos meios de comunicação. Mas enquanto os jogadores homens sempre foram celebrados como heróis nacionais, as mulheres enfrentaram uma longa e silenciosa exclusão, não só dos campos, mas também das páginas de jornal, das câmeras de TV e dos microfones esportivos.

A ausência de cobertura midiática sobre o futebol feminino não foi um detalhe. Foi uma omissão histórica que moldou a percepção pública sobre quem poderia ou não jogar bola. Se o que não é visto tende a não ser valorizado, o futebol feminino passou décadas sendo considerado irrelevante. E boa parte disso se deve à forma como a mídia ignorou, distorceu ou diminuiu o papel das mulheres nesse cenário.

O início silenciado

As primeiras partidas femininas registradas no Brasil ocorreram ainda na década de 1920. Mesmo assim, a cobertura era quase nula e, quando existia, era repleta de ironias e comentários depreciativos. Em 1941, o governo de Getúlio Vargas publicou um decreto que proibia mulheres de praticar esportes “incompatíveis com a natureza feminina”. O futebol estava entre eles. Durante quase quatro décadas, a prática permaneceu marginalizada e a mídia seguiu a mesma lógica de exclusão.

Esse período de proibição legal coincidiu com um completo silêncio midiático. A ausência de registros, entrevistas e reportagens fez com que muitas histórias dessas pioneiras se perdessem no tempo. Quando as mulheres retornaram oficialmente aos gramados, em 1979, após a revogação da proibição, já estavam em desvantagem: invisíveis para patrocinadores, federações e, claro, para o público.

A cobertura que reforça estereótipos

Mesmo com o retorno da prática esportiva, a cobertura da imprensa seguiu limitada. Quando falava de futebol feminino, os veículos priorizavam aspectos como beleza, comportamento ou vida pessoal das jogadoras, em vez de discutir táticas, campeonatos ou desempenho técnico. Esse tipo de abordagem não apenas banalizava a modalidade como reforçava a ideia de que o esporte feminino era menos sério ou profissional.

Além disso, muitas transmissões eram feitas em horários pouco acessíveis, sem divulgação prévia ou com estrutura inferior à destinada aos jogos masculinos. A escassez de cobertura contínua prejudicava o crescimento da modalidade e afastava possíveis torcedores, que tinham dificuldade em acompanhar campeonatos e identificar jogadoras.

O impacto das redes sociais

Com o avanço da internet e das redes sociais, especialmente a partir da década de 2010, o futebol feminino encontrou novos caminhos para se fazer ouvir. Jogadoras passaram a usar seus perfis como ferramentas de visibilidade e mobilização. Marta, Formiga, Cristiane e outras atletas se tornaram vozes ativas na defesa da modalidade e passaram a chamar atenção para as desigualdades estruturais no esporte.

Além das atletas, surgiram iniciativas jornalísticas independentes dedicadas à cobertura do futebol feminino, como os projetos Dibradoras, Planeta Futebol Feminino e ESPNW (nos Estados Unidos). Esses canais passaram a ocupar o espaço que a grande mídia negligenciava, trazendo análises técnicas, entrevistas exclusivas e cobertura em tempo real.

A pressão popular por mais igualdade de espaço nas transmissões também influenciou os grandes veículos. Em 2019, a TV Globo transmitiu pela primeira vez jogos da seleção feminina na Copa do Mundo com maior destaque, gerando recorde de audiência. A visibilidade foi comemorada, mas também escancarou o quanto essa cobertura havia sido negligenciada até então.

Os dados que revelam o abismo

Mesmo com alguns avanços, a disparidade ainda é evidente. Em 2022, uma pesquisa da Agência Mural revelou que apenas 9% das reportagens esportivas produzidas pelos principais veículos abordavam o futebol feminino. A maioria dos espaços ainda é dedicada ao masculino, inclusive nos programas de debate, onde raramente há comentaristas especializadas em futebol jogado por mulheres.

Além disso, estudos apontam que quando o futebol feminino é mencionado, a linguagem utilizada ainda carrega preconceitos. Verbos no diminutivo, estereótipos sobre comportamento ou comparações constantes com o futebol masculino são comuns e reforçam a ideia de que a modalidade feminina é “inferior” ou “menos interessante”.

Um futuro construído com visibilidade

O papel da mídia vai além da simples transmissão de jogos. Ela tem o poder de influenciar narrativas, formar opinião pública e impulsionar mudanças culturais. Quando invisibiliza o futebol feminino, contribui para a manutenção das desigualdades. Mas quando investe em uma cobertura justa, técnica e frequente, ajuda a construir uma nova geração de torcedoras e jogadores.

Hoje, o cenário é de transformação, ainda que lenta. A presença de mulheres na narração, na reportagem esportiva e na análise técnica está aumentando. Mais emissoras estão adquirindo os direitos de transmissão de campeonatos femininos e patrocinadores começam a enxergar valor nesse mercado. Porém, o desafio permanece: garantir que a cobertura midiática deixe de ser uma exceção e se torne a regra.

 

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